quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A hora do almoço

  
Eu estava fazendo meu ritual de toda manhã quando percebi que alguma coisa estava errada. Fora do lugar, mal colocada ou talvez até desaparecida. No meu quarto pequeno e aconchegante, minhas coisas pareciam estar na sua devida bagunça: roupas jogadas em cima da cadeira, livros para todos os lados, copos vazios no criado mudo, folhas de caderno rasgadas pelo chão, um montinho mal feito de CDs na prateleira. Meu jeitinho desorganizado era a estampa ilustrada do meu quarto. Sempre me achei na minha bagunça, mas hoje eu estava perdida nela. Eu parecia fora do lugar, fora de mim, em um ato quase desesperado tentando encontrar o que havia perdido, sumido, ou sei lá. O caso era que essa tal coisa não estava ali. O que poderia ser? Eu me perguntava intrigada e prestes a ficar mal humorada. A resposta parecia está na ponta da língua e no entanto, nada ficava claro em minha mente.
O cheiro de café fresco logo de manhã cedo dominou por completo o espaço a minha volta. Eu amava aquele cheiro. Amava a sensação reconfortante que ele me dava e odiava a agonizante familiaridade com algo que ainda vivia em mim, mas que por hora estava repentinamente esquecido. Eu tinha esquecido dessa tal coisa e agora o cheiro me obrigava a lembrar de um jeito ou de outro.
Ainda sonolenta, com as pálpebras pesadas e o corpo preguiçoso, eu analisei atentamente a casa velha, grande e bagunçada que agora era minha casa. Pelo menos na teoria. Vi minha avó sentar na cadeira ao meu lado e escutei seus comentários sobre o capítulo passado da novela, ri quando ela xingou umas quatro vezes o cachorro que não parava de latir e conversei com ela a respeito do livro que eu tinha acabado de ler.
Era uma manhã tranquila, típica, igual a todas as outras.
Foi umas horas depois, na hora do almoço, que eu me toquei. Foi sentando sozinha a mesa, encarando as cadeiras vazias e ouvindo o silêncio que eu descobri o que era a tal coisa que faltava. Na verdade, quem era a tal pessoa que havia sumido. Ah, como eu queria não ter me lembrado! A brincadeira de faz de conta estava quase me convencendo do ''é só mais um dia bom''. A dona Saudade estava demorando para aparecer hoje. De certo, ensaiando uma entrada triunfante. E como sempre, seus shows viravam um grande espetáculo na minha vida chata.
Eu senti falta dela na hora do almoço. Senti falta da conversa jogada fora, dos olhares brincalhões, dos sorrisos de canto de boca. Senti falta dela quando acordei sem as janelas sendo abertas e as luzes acesas, sem a demora na fila do banheiro, sem a reclamação constante sobre o peso, sem o beijo de despedida antes de ir para o trabalho. Senti falta dela até no cheiro, na aparência e no gosto da comida.
A saudade manifesta toda sua carga dolorosa, toda sua intensidade forte e apavorante nas pequenas coisa, nos pequenos detalhes, nas mais improváveis horas. Como momentos tão curtos, pensamentos tão passageiros, lembranças mal vistas, coisinhas que pareciam ser tão insignificantes conseguiam ter tanta influência na saudade? Infelizmente, a saudade usa esse golpe baixo para aqueles que nutrem um amor inacabável ou para aqueles que olham de tempos em tempos para trás: ela pega algo pequeno e o transforma em grande, um efeito escasso em um sentimento doloroso.   
Ri de mim mesma enquanto detalhava certas ironias que escreviam o roteiro do meu cotidiano. A hora do almoço costumava ser algo tão comum que eu mal dava importância. Minutos depois eu já teria esquecido o que comi. Mas hoje foi diferente, Daqui pra frente tudo seria diferente.
Sem ela, até a hora do almoço tornara-se sem graça para mim.

Por Ridrya Carolin