quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Um amor incômodo

 


Eu vejo o incômodo sentado no sofá no meio de nós dois.
Eu o vejo olhando pra mim. Ele acena, ele me toca e até me arranha. Ele quer ser notado, quer que eu olhe de volta, quer que eu o veja. 
E, às vezes, eu acho até que ele quer que eu o reconheça.
Eu ouço o incômodo em cada palavra que você fala. 
Ele me atinge tão forte que me embrulha o estômago, para minha respiração, sufoca e me deixa inquieta. Ele é mudo, mas grita no meu ouvido toda vez que a tua opinião atropela a minha, que as tuas crenças questionam a educação que me criou, que o teu julgamento me empurra e me esmurra na parede. Em silêncio, eu ouço tão claramente o incômodo gritar toda vez que a tua honra derruba o meu valor e a tua seriedade julga a moral da minha empatia. 
Eu absorvo todos os dias as tua palavras, eu engulo no seco os teus pensamentos e as tua regras. Eu só ouço você no dia dia e te ouvir botou em cheque tudo que eu sabia. Fez eu mudar de comportamento, me obrigou a procurar o erro nas outras, me induziu a achar o erro em mim. Eu conto meus passos, eu abaixo os olhos, eu troco um pouco menos que uma dúzia de palavras com os outros em volta. Eu reduzo minha fala e me prendo dentro de casa.
A mulher que me habita, a dona dos livros da minha estante, a garota no porta retrato, os amigos de infância, os estranhos da rotina, os parentes distantes, a velha da padaria, a delegada, a filha. Nada mais me reconhece. Ninguém mais me conhece. Eu mesma me estranho e não me suporto. E tento tão desesperadamente mudar de forma, de cor, de peso só para ser do teu gosto, só para me encaixar na lista de verificação que você criou, pra ser do padrão que você disse que é o certo.
Para ser amada por você eu fiz concessões, eu cedi detalhes, troquei toda minha base, me encolhi para caber na sua vida. Para amar você, eu invalidei todo o resto porque fui constantemente invalidada pelo teu todo.
Então, eu me pergunto tão perdida e desesperada, tão presa e já tão apagada, tão doente, dormente e dopada: por que eu continuo aqui alimentando um amor incômodo?
Um amor que incomoda meu ser, minha família, meus amigos, meu passado, meu querer, meu gostos, meu futuro.
Um amor que faz eu não me gostar, que fez eu me odiar, que faz eu me esconder, que insiste em me apagar e, às vezes, até pede para de pouco em pouco eu me matar.
Então, eu me pergunto já tão sozinha, já tão sem ninguém, já tão sem a pessoas que eu afastei, já tão sem os amigos que eu cansei: por que eu continuo aqui alimentando um amor que tanto se incomoda?
Um amor que se incomoda com o meu ser, com a minha família, meus amigos, meu passado, meu querer, meu gostos e meu futuro.
Por que eu vivo dentro desse amor tão incômodo?
E, de repente, de modo rápido, em tantos meses e tantos dias depois tudo que me resta é o que você me ofereceu e eu involuntariamente aceitei. A única coisa que você soube retribuir. A única coisa que você podia me dar. A única coisa que você tinha e era capaz de me entregar. Um amor incômodo que me tolera, me anula, me acaba e, até mesmo, entre falas e silêncio, me mata.
Eu sento e te observo.
E, no mesmo sofá, entre nós dois, sempre tem ele.
E nunca, em nenhum momento, desde o começo, desde o primeiro beijo, nunca ficamos a sós.