domingo, 7 de janeiro de 2024

Um tanto mais de nós dois


Ele tinha um gosto familiar.
Era confortável, amigável, gentil. Era cativante, vivo e manso. Era a simplicidade da rotina, era alegria de coisa simples, sobremesa antes do almoço, era sol de início de dia, cor de fim de tarde, cheiro de casa limpa, descanso depois de um dia cheio.
Ele sabia ser domingo. Simples, preguiçoso, monótono e livre. Era descanso e sabia dar descanso. Era leve e sabia dar leveza.
Ele sabia ser feliz e fazer feliz. Era pizza num sábado a noite vendo filme jogados no sofá, era comer pastel na feirinha sábado de manhã, era brincar de implicar, era dançar sem música. Era rir e saber fazer rir.
Ele sabia ser e sabia deixar ser. Era liberdade de coisas simples. Liberdade de contrariar, de desagradar e até desgostar. Liberdade de gostar do que gosta, de falar o que pensa e de fazer sem pensar. Ele era quem é e me deixava ser. Ele sabia quem eu era e deixava eu me gostar.
Ele era amor e sabia amar. Às vezes de um jeito torto, um pouco inseguro, meio brusco, mas, no fim, sabia me amar. 
No fim do dia, deixava eu me amar. Às vezes de um jeito confuso, exigente e insatisfeito, mas ainda sim era um amor imenso só de deixar. Tão simples, profundo e sem rédeas. Tão sem incômodos, leve e solto.
Eu demorei pra ver. Eu tive que cair pra entender. Eu tive que te perder pra saber. Eu tive que me perder pra reconhecer. Eu tive que ser sozinha, presa e quebrada pra ver que um amor para amar só precisa deixar ser e com você eu fui e ainda sou. Eu pude ser eu e fui amada só por ser. Tão simples, tão comum, tão raro.
Eu tive que te encontrar de novo no começo de tudo pra driblar esse fim vestido de nadas e desencontros. Tive que ir na nossa rua, passar em frente daquela esquina, voltar para o lugar onde nossos passos escreveram nossa história para implorar por mais espaços em branco. Um tanto mais só pra gente ter liberdade de ser um tanto mais juntos.
E ali no começo de tudo e diante de tanto fim, eu pedi um tanto mais de nós. E pedi também um tanto mais de força para as circunstâncias não nos achar, o tempo não nos tocar e todos os contras não nos ver.
Bem ali no lugar onde eu te conheci, eu me lembrei do teu cheiro, do teu som, do teu gosto.
Tu tinha um gosto familiar.
Eu demorei anos para reconhecer até que eu soube.
Tu tinha um gosto familiar de abrigo, de casa, de lar.

Para ler ouvindo: Chão de Giz - Zé Ramalho

Por Ridrya Queiroz