terça-feira, 18 de outubro de 2016

Mil coisas que eu nunca te contei


Estava chovendo, caindo o mundo lá fora. 
O vento dava socos violentos nas janelas e nas portas. Alguns respingos da chuva invadiam as dobradiças da entrada da varanda, molhando o chão. As cores acinzentadas do clima refletiam-se pelas vidraças iluminando a escuridão da casa a sua maneira opaca e singular. Eu me sentei no sofazinho próximo a janela do meu quarto, bebericando uma caneca de café bem quente enquanto olhava para o nada na paisagem da velha cidadezinha do interior, num domingo monótono e vazio.  
Era apenas eu ali. Da sala para cozinha, do quarto para o banheiro, do corredor para o chão, dos olhos nas janelas embaçadas para o teto branco. 
Era eu, a chuva, o escuro e o silêncio da casa. 
O grito brusco do trovão me arrepiou dos pés à cabeça. Dei um pulo, assustada e chamei uma série de palavrões em voz alta. Droga! Será que eu não mudo? 20 anos depois e eu ainda tinha medo de trovão.
Mas eu nunca te contei isso, né? Acho que você nunca soube dos meus medos de trovão, do escuro e de baratas. Na verdade, acho que não te contei muitas coisas. Sobre mim, sobre você, sobre nós. Acho que eu nunca te contei nossa história no ponto de vista dos meus olhos, do meu coração, da minha imaginação. Nunca te narrei a trama desse quase romance protagonizado e dirigido apenas por mim. 
Faz tanto tempo que eu não te vejo. Tanto tempo que não ouço falar de você, que não sei das suas histórias, das suas aventuras e loucuras. Tanto tempo que não ouço a tua voz falar meu nome. Eu nunca te contei, mas eu sentia um frio na barriga agonizante toda vez que você falava meu nome, fosse num rápido chamado, num grito no meio da rua ou num sussurro ao pé do ouvido. Meu nome se tornava mais bonito na tua boca, mais especial na tua voz que sempre seduziu meus ouvidos. 
Eu nunca te contei, mas eu sei qual é o teu sorvete preferido mesmo sem nunca termos ido juntos a uma sorveteria. Eu sei que você arregala os olhos quando conta uma mentira descarada, que anda de um lado para o outro quando está incomodado e que reprime vários sorrisos quando está do meu lado.
Eu nunca te contei que logo na primeira vez que eu te vi, naquela reuniãozinha de poucas pessoas na chácara da minha amiga, eu me encantei por você. Foi de súbito, de surpresa e imprevisível. Foi questão de segundos, foi só bater o olho, foi logo a primeira vista. Eu te vi e uma onda enorme e pesada me arrastou para dentro de ti. Ignorei o máximo que eu pude, me fiz de desentendida e te fiz de desinteressante. Não sei se você lembra, mas naquela época eu estava quase "sério" com outro alguém. E meu olhos, que eu julgava só conseguirem enxergar a ele, se voltaram para ti sem o menor esforço.
Eu nunca te contei que na primeira vez que você chegou em mim eu fiquei sem ar. Fiquei sem defesa, sem controle, esqueci como se faz charminho e quase cedi a tentação de te querer. Foi por um triz, foi por muito pouco, mas naquela época eu ainda sabia por onde fugir. Eu ainda sabia pensar só em mim. 
Eu acho que eu também nunca te contei que você foi a primeira pessoa que me fez ver que o cara com quem eu estava não era nada do que eu imaginava. Você disse algo curto e rápido, talvez até sem intenção, mas que me mostrou coisas que eu não queria ver e que demorei para aceitar. 
Eu nunca te contei, mas eu me lembro da blusa que você usou na primeira vez que a gente se beijou. Eu ainda tenho guardada na cabeça a imagem do teu sorriso, ainda consigo escutar a péssima cantada que você falou, ainda posso sentir o cheiro do teu perfume que, alias, até hoje é o mesmo. Depois de encontrar você, eu sempre voltava pra casa com teu cheiro impregnado na minha pele. E nunca existiu nenhum outro perfume que superasse o teu cheiro misturado ao meu. 
Eu nunca te contei, mas eu me lembro de tudo. De todos os momentos, todas as falas, todos os segundos. De todas as mágoas, as raivas, as carícias, os sorrisos. De todos os dias, tardes e noites. De todas as festas, churrascos, aniversários. Da primeira vista, do primeiro encontro, primeiro beijo, ficada e dormida. Primeira saudade, briga e ciúme. Do primeiro reencontro, da primeira ida e primeira volta.  
Eu me lembro de todas as primeiras e últimas vezes que eu te vi, que eu te beijei, que eu fui só sua e te amei. 
São mil coisas que eu nunca te contei. 
Mas, pensando bem, eu te contei sim. Te contei tudo. Não deixei faltar nada, nenhum detalhe, nenhuma rasura. Mas você nunca soube ouvir o meu silêncio, nunca soube ler meus olhos, nunca soube me entender. Talvez você nem quisesse, nem se esforçasse, nem fizesse questão. 
Você nunca viu, nunca ouviu, nunca entendeu.
Era eu. 
Esse tempo todo era eu. A peça que faltava naquela lacuna, o encaixe perfeito do teu espaço vazio. Eu esperei todo esse tempo você descobrir que essa falta sem explicação que você frequentemente sente, era eu. Mas o tempo cansou de mim, eu cansei do tempo e nós cansamos de você. 
Meu amor, se você tivesse parado pra prestar atenção no meu olhar, no meu olho dentro do teu, nos teus olhos em cima do meu. Nos nossos olhares. Nos rápidos, nos demorados e nos fixos. Nos provocantes, insinuantes, descarados e fogosos. Nos tímidos, nos de soslaio e chorosos. Nos flagrados, nos sem querer, nos de propósito. E, até mesmo, nos evitados, escondidos e indecifrados. 
Estava o tempo todo ali, no meu olhar. Bem na sua frente, bem na sua cara. Tão cheio de significado. Tão cheio de palavras, de música e poesia. Tão cheio de voz, de coragem e determinação. Tão entregue e temente a você.
Foram mil palavras, mil revelações, mil segredos, mil declarações em mil olhares de todos os tipo, de todos os ângulos, de todo jeito possível em todo lugar. 
Mil coisas que eu te contei sem te dizer. E, mesmo assim, você nunca soube e nem nunca vai saber.
Ainda existe mais outras mil coisas que eu não contei e nem sei se um dia irei contar, seja pela minha voz ou pelo meu olhar.
Mas nesse exato momento, eu só queria te contar que tudo que eu mais quero é correr pra você no meio da rua debaixo dessa chuva entre uma trovoada. E, quem sabe, pela primeira vez, eu não tenha medo de trovão. 


Por Ridrya Carolin

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